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Artigo sobre o Fígado na Revista Medicina Chinesa Brasil #14
Na edição número 14 da Revista Medicina Chinesa Brasil, tivemos o artigo “Medicina Chinesa em campo: o Técnico” publicado, tratando do complexo papel do Fígado, segundo o entendimento da Medicina Chinesa. Este artigo faz parte de uma série que visa explicar os complexos conceitos das funções dos Órgãos e Vísceras (Zang Fu) para o leigo de maneira mais palpável, utilizando da analogia com o futebol.
A revista é uma grande referência na área da Medicina Chinesa contanto sempre com artigos sobre a situação da prática desta medicina em nosso país, no mundo, sobre pesquisas modernas e sobre tratados clássicos.
As ilustrações desta série de artigos são do excelente Caio Vitor. Para mais informações visite: http://cargocollective.com/caiovitor
A revista é digital, grátis e pode ser acessada pelo link: http://www.ebramec.com.br/revistamc14.htm
Edgar Cantelli Gaspar – edgar@terapiaschinesas.com.br – Twitter: @edgarcantelli
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O café na visão da Medicina Chinesa
O café é a bebida produzida mais consumida do mundo. Nós brasileiros consumimos em média 4,81 kg de café por ano, segundo dados de 2010 do Ministério da Agricultura. Esse foi o maior nível em 45 anos. Essa quantidade equivale a quase 81 litros da bebida por pessoa. Esses números aproximam o Brasil da Alemanha, cujo consumo é de 5,86 kg por habitante. O consumo brasileiro já é maior que o da Itália e da França, tradicionalmente grandes consumidores. Os maiores consumidores de café do mundo são os países nórdicos, como a Finlândia, Noruega e Dinamarca, cujo volume se aproxima dos 13 kg por pessoa ao ano.
Por conta de todo esse consumo e disseminação, os efeitos do café sobre a nossa saúde tem sido largamente pesquisados. Mas as conclusões obtidas por essas pesquisas, muitas vezes feitas sob um prisma muito estreito, tem sido, em geral, conflitantes. Numa pesquisa rápida na internet é fácil encontrar artigos apontando os malefícios do café, recomendando veementemente a sua retirada da ingestão cotidiana e outros apontando, também com bases cientificas, seus benefícios, chegando a considerá-lo, por exemplo, a chave da longevidade dos povos do mediterrâneo.
Por conta desse cenário, é importante saber dos efeitos do café sob o ponto de vista da medicina chinesa para termos uma visão mais abrangente. A primeira concepção que devemos ter é que o café, por ser um componente vegetal ingerido regularmente, é entendido como um fitoterápico. E como todo fitoterápico, possui efeitos específicos, podendo trazer benefícios concretos para pessoas que necessitam desse efeito e também produzir resultados indesejáveis para outras pessoas em outras condições de saúde.
O café faz parte parte da família das Rubiaceae, a qual pertencem vários outros fitoterápicos usados largamente na medicina chinesa, como o Zhī Zǐ (梔子), o Ba Ji Tian (巴戟天) e o Gou Téng (鉤藤) . É interessante observar que, para possuirem efeitos terapêuticos, a dosagem média usada desses componentes deve ser entre 6 a 18 gramas diárias. Uma xícara típica de café é feita com 6 a 9 gramas. Se considerarmos a ingestão de uma a três xícaras de café por dia, ela estará dentre dessa faixa de efeito terapêutico.
O principal efeito do café é promover as funções do sistema físico e energético do Fígado (肝 – Gān). Dentre todas as funções deste sistema fisiológico, a que o café atua mais diretamente é na promoção da circulação do Qi (氣 – Energia) do Fígado (肝 – Gān). O Fígado (肝 – Gān), no entendimento da medicina chinesa, é responsável pelo direcionamento do fluxo de Qi (氣 – Energia) do nosso corpo. Como essa circulação energética é responsável pelo impulsionamento do Sangue (血 – Xuè), o Fígado (肝 – Gān) controla, assim, as diferenças de circulação de Sangue (血 – Xuè) que nosso corpo realiza ao longo do dia. Em outras palavras, quando corremos, é esse sistema que envia mais Qi (氣 – Energia) e Sangue (血 – Xuè) para as pernas. Quando comemos ele os direciona para o Estômago (胃 – Wèi). Para saber mais do papel do sistema do Fígado na nossa saúde, recomendo o nosso artigo “Medicina Chinesa em campo – o técnico”.
Facilmente essa função pode diminuir, o que chamamos de Depressão do Qi do Fígado (肝气郁 – Gān Qì Yù). Isso se deve especialmente aos padrões psíquicos de ansiedade, frustração e irritabilidade. Para saber mais sobre essa disfunção, recomendo o artigo “O gato toma leite, o rato come queijo e eu sou acupunturista”.
O café atua na estimulação dessa função e, por isso, seu efeito de rápida ação gerador de maior vitalidade física e psíquica. Isto acontece pois o Qi (氣 – Energia) e Sangue (血 – Xuè) circulam e são direcionados com mais eficácia. Um dos usos mais antigos do café na medicina chinesa é no tratamento para regularizar a menstruação atrasada nos casos em que o sistema do Fígado (肝 – Gān) não é capaz de direcionar com facilidade o Sangue (血 – Xuè) para o útero e nem promover o fluxo da menstruação.
Como efeito secundário, o café também atua no sistema físico e energético do Coração (心 – Xīn), também aumentando suas funções. Especificamente ele atua no efeito que chamamos tecnicamente de “abrir os orifícios do Coração (心 – Xīn)”. Esse é um termo metafórico para designar a ação deste sistema na manutenção da nossa consciência, especificamente no que diz respeito à nossa atenção e foco psíquico. Isso explica portanto o efeito do café no aumento do nosso foco e da nossa atenção.
O aumento dessas funções, porém, nem sempre é benéfico. Uma pessoa que já apresente uma hiperatividade das funções do Fígado (肝 – Gān) e do Coração (心 – Xīn) rapidamente sentirá os efeitos prejudiciais do café. Como ele intensificará ainda mais o fluxo da circulação em geral, aumentará, por exemplo, a pressão intracraniana, gerando enxaquecas. Outros sintomas comuns são: fotofobia, aumento do fluxo menstrual, aftas, acnes, irritabilidade, dentre outros. Como o Estômago (胃 – Wèi) receberá um aporte abrupto e exagerado de circulação, aumentando demasiadamente suas funções, o café facilmente sintomas gástricos como queimação, refluxo e gastrite.
Por sua ação no Coração (心 – Xīn), o café pode provocar palpitações, excesso de transpiração, ansiedade, e por aumentar as funções psíquicas, pode provocar ainda insônia, euforia, memória comprometida e irritabilidade.
O mais importante, portanto, é conhecer-se. Saber que o café, como quase todo alimento, pode fazer bem ou mal. Isso depende do estado da nossa saúde naquele momento e da quantidade que ingerimos aquela substância. Se você tem dúvidas se o café, ou qualquer outro alimento ou hábito, pode estar lhe fazendo mal, recomendo fortemente que faça uma consulta com um bom profissional de medicina chinesa. Ele será capaz de identificar e lhe explicar a situação da sua saúde e que efeitos são gerados por determinado alimento ou hábito.
Edgar Cantelli Gaspar – edgar@terapiaschinesas.com.br
Twitter: @edgarcantelli -
Medicina Chinesa em campo – o técnico
Quando o time ganha, o mérito é dos jogadores. O ataque foi eficiente. O meio campo criativo. A defesa sólida. O goleiro, uma muralha. Agora, quando o time perde, sempre a culpa é do técnico. O Barcelona acabou de ser campeão mundial massacrando o meu pobre Santos. Li e ouvi todos os elogios ao incrível time. Mas nem uma palavra sobre o esquecido Guardiola, técnico do time catalão. Sobre o Santos, o que mais encontramos é que ele entrou em campo com a postura inadequada, mal escalado, mal preparado. Culpa do coitado do Muricy.
Da mesma forma acontece na nossa saúde. O indivíduo que tem grande preparo físico tem um Pulmão (肺 – Fèi) de aço. O que consegue comer de tudo sem passar mal tem um Estômago (胃 – Wèi) de avestruz. O inteligente tem uma boa cabeça. Os chineses dizem que a pessoa corajosa tem a “Vesícula Biliar (胆 – Dǎn) grande” (pela influência que está Víscera exerce sobre a Mente). Agora, quando comemos demais, ou inadequadamente, não dormimos, bebemos, aí é que lembramos do Fígado (肝 – Gān). É difícil um paciente sair de uma consulta de medicina chinesa sem que o terapeuta não fale alguma coisa das “culpas” do seu Fígado (肝 – Gān).
E por que o Fígado (肝 – Gān) é tão falado e considerado quando estamos com a nossa saúde em desarmonia? Porque ele tem uma função do seu aspecto energético fundamental que é o direcionamento do fluxo da nossa Energia (氣 – Qì). E a grande função da nossa Energia(氣 – Qì) é impulsionar o nosso Sangue (血 – Xuè). Não basta, portanto, que o nosso Coração (心 – Xīn) tenha capacidade de marcar o gol, que é produzir e ter a força de impulsionamento do Sangue (心 – Xīn). O nosso técnico, o Fígado (肝 – Gān), tem de ser capaz de articular todo o time para que esse Sangue chegue onde tenha de chegar, no momento certo.
Um grande e prático exemplo dessa função acontece no momento que nos alimentamos: o sistema físico e energético do Fígado (肝 – Gān) identifica que o alimento chegou ao Estômago (胃 – Wèi) e que essa Víscera (腑 – Fǔ) precisará de energia (氣 – Qì) e Sangue (血 – Xuè) para poder trabalhar esse alimento. Nossa circulação deve ser capaz de executar esse direcionamento. Por isso, é esperado que tenhamos um pouco de sono, especialmente quando comemos algo de mais difícil digestão, pois a circulação de energia e Sangue (血 – Xuè) irá diminuir no restante do corpo, inclusive no Cérebro (脑 – Nǎo).
Quando corremos, o Sangue (血 – Xuè) tem de ir para as pernas. Quando pensamos muito, para a cabeça. Quando combatemos um resfriado, nossa circulação deve vir à superfície do corpo. Quando estamos com alguma patologia profunda, nossa circulação deve se aprofundar. Quando o corpo faz isso adequadamente, ninguém lembra do técnico, pois o time fez o que tinha de fazer. Mas quando não consegue, e temos sintomas como dificuldade de movimentação das articulações, dificuldade de raciocínio, digestão lenta, com formação de gases, menstruação com cólica e formação de coágulos, dentre inúmeros outros fatores relacionados a essa dificuldade de circulação, chamada de Estase na medicina chinesa, lembramos do sistema energético do Fígado (肝 – Gān).
Olhando para os técnicos de futebol como Muricy, Luxemburgo, Felipão, Parreira, fica evidente que o padrão emocional que prevalece nesse cargo é a irritabilidade. Da mesma forma quando temos algum Padrão de Desarmonia do Fígado (肝 – Gān), temos o reflexo imediato na Mente (神 – Shén) da irritabilidade. Mas a outra via é muitíssimo importante de ser entendida e considerada, ou seja, quando mantemos um padrão psíquico emocional de irritabilidade, de raiva, de frustração, de ansiedade, de mágoa, que são todas consideradas emoções do mesmo padrão energético, geramos algum distúrbio especialmente nessa principal função do Fígado (肝 – Gān), que é manter essa circulação fácil e fluída. Isso acontece porque o sistema do Fígado (肝 – Gān) precisa ficar alimentando a Mente (神 – Shén) exageradamente durante a manutenção desses padrões psíquico emocionais, se desgastando para a execução das suas demais funções. Mesmo as funções mais atreladas à sua estrutura são prejudicadas, como a geração da bile, favorecendo a formação de cálculos na Vesícula Biliar (胆 – Dǎn), Víscera (腑 – Fǔ) que trabalha em conjunto com o Fígado (肝 – Gān), e também tornando o paciente muito mais sensível à digestão de gordura, doces e álcool, por exemplo.
O Fígado (肝 – Gān), por essas características, nos textos clássicos da medicina chinesa, sempre foi chamado de “o general” da nossa fisiologia. A grande função do general é a estratégia, o planejamento da guerra, que é a obtenção de um resultado. Da mesma forma no nosso organismo, o Fígado (肝 – Gān) nutre a Mente (神 – Shén) de uma função chamada de Alma Etérea (魂 – Hún). Na verdade a Alma Etérea (魂 – Hún) engloba um conjunto de funções que compreendem a imaginação, o planejamento e a projeção tanto no futuro, quanto no passado. Uma vida de ansiedade constante faz com que esse sistema fique extremamente sobrecarregado, pois a Mente (神 – Shén) entrará numa hiperatividade da Alma Etérea (魂 – Hún), imaginando e planejando o futuro constantemente, gerando assim um desgaste nas funções do Fígado de modo geral, refletindo posteriormente nos sintomas físicos da Estase.
Um estilo de vida mais simples, com vontades e objetivos mais palpáveis, realistas e organizados evita uma vida de frustração, irritabilidade e ansiedade, o que favorece muito o sistema físico e energético do Fígado (肝 – Gān). Dormir cedo, alimentar-se de verduras e legumes verdes, assim como alimentos amargos, também ajudam muito para a manutenção da saúde do nosso técnico. Tudo isso é fundamental pois, muito diferente do mundo do futebol, onde os clubes trocam de técnico a todo momento, não é possível trocarmos o nosso com tanta facilidade!
Esse foi nosso último artigo da série “Medicina Chinesa em campo”. Agradeço muito à Luciana Ribeiro pelas precisas e cuidadosas revisões de texto e ao Caio Vitor pelas lindas e divertidas ilustrações!
Para quem não leu algum dos artigos anteriores dessa série, seguem os links:
Edgar Cantelli Gaspar – edgar@terapiaschinesas.com.br – Twitter: @edgarcantelli
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O gato toma leite, o rato come queijo e eu sou acupunturista
Toda alteração, sintoma ou patologia do nosso organismo são entendidos na Medicina Chinesa como sendo uma manifestação de um Padrão. Um Padrão é uma alteração fisiológica que gera uma diminuição de alguma função orgânica, uma hiperatividade, uma diminuição das condições estruturais, dentre vários outros tipos. Desses Padrões, o mais comum é chamado de Depressão do Qi do Fígado (肝气郁 – Gān Qì Yù). Ele consiste numa incapacidade do sistema físico e energético do Fígado (肝 – Gān) em cumprir com eficácia e fluidez a sua principal função energética que é o direcionamento do fluxo de Energia (气 – Qì) e do Sangue (血 – Xuè). Tem-se então repercussões desse Padrão em toda a fisiologia: a digestão fica mais lenta, assim como o funcionamento intestinal, a circulação sanguínea fica prejudicada, aumentam-se as chances de dor de cabeça e tensão pré-menstrual e o principal é o reflexo na Mente (神 – Shén), com prejuízo das funções de criatividade, imaginação e sensação de felicidade.
O mais interessante é que a origem desse Padrão é psíquico-emocional, em praticamente todos os casos. É óbvio que uma alimentação que sobrecarrega as funções do Fígado, tendências congênitas, traumas infantis, também podem facilitar o surgimento deste quadro. Mas sempre há um componente emocional presente.
Toda alteração patológica que tem sua origem interna (内因 – Nèi Yīn) é decorrente da manutenção por longo período de um mesmo sentimento ou padrão psíquico. No caso do sistema físico e energético do Fígado, a emoção que encontramos nos tratados de Medicina Chinesa, como sendo a que principalmente altera sua fisiologia é a raiva (怒`- Nù). Mas é fundamental entendermos que os chineses antigos consideravam os cinco tipos principais de emoções (raiva, euforia, preocupação, tristeza e medo), como grandes categorias, possuindo enormes subtipos, desdobramentos e combinações.
Ao perguntarmos para um paciente se ele sente alguma raiva persistente, de modo geral, ele responderá que não. Mas poderá relatar que sente frustração, mágoa e ressentimento. Estes são considerados tipos de raiva, na Medicina Chinesa.
Destes subtipos o mais importante é a frustração. Alguns estudiosos da Medicina Chinesa, como Giovanni Maciocia e Bob Flaws, chegam a afirmar que todos nós temos algum grau de frustração persistente e, por isso, algum grau de Depressão do Qi do Fígado. Todos nós não temos todos os nossos desejos e vontades atendidas da forma e na velocidade que gostaríamos.
Assim, temos um grande problema na prática clínica da Medicina Chinesa: tratar esse Padrão é relativamente fácil, melhorando suas manifestações e seus sintomas. Mas, como a frustração persiste, o Padrão rapidamente retorna a se formar.
Esse é um dos motivos que fizeram com que todas as tradições espirituais orientais, dessem tanto foco na diminuição dos desejos egóicos, como uma condição fundamental para que tivéssemos chance de vivermos mais saudáveis e felizes.
No Taoismo, tradição que deu origem à Medicina Chinesa, essa condição é um dos pilares filosóficos que norteiam a nossa vida em direção à simplicidade. Os outros dois são a humildade e a afetividade. E no conceito de simplicidade taoista está inserida a aceitação. Wu Jyh Cherng, fundador da Sociedade Taoista do Brasil, e meu mestre no Taoismo, dizia que a aceitação das nossas condições, de quem somos e do nosso momento de vida é o segundo passo na nossa transformação de vida para um caminho mais feliz. O primeiro, dizia, é a conscientização.
Quem quiser ver um lindo retrato desse processo de conscientização, aceitação e transformação através da simplicidade, e também da humildade e da afetividade, veja o filme “O Palhaço”, escrito, dirigido e interpretado pelo Selton Mello. Não deixe de ver no cinema pois, além de um roteiro maravilhoso, é um filme lindo, com uma trilha sonora impecável.
Agradeço a Rachel Prada pela indicação do filme!