• O café na visão da Medicina Chinesa

    caféO café é a bebida produzida mais consumida do mundo. Nós brasileiros consumimos em média 4,81 kg de café por ano, segundo dados de 2010 do Ministério da Agricultura. Esse foi o maior nível em 45 anos. Essa quantidade equivale a quase 81 litros da bebida por pessoa. Esses números aproximam o Brasil da Alemanha, cujo consumo é de 5,86 kg por habitante. O consumo brasileiro já é maior que o da Itália e da França, tradicionalmente grandes consumidores. Os maiores consumidores de café do mundo são os países nórdicos, como a Finlândia, Noruega e Dinamarca, cujo volume se aproxima dos 13 kg por pessoa ao ano.

    Por conta de todo esse consumo e disseminação, os efeitos do café sobre a nossa saúde tem sido largamente pesquisados. Mas as conclusões obtidas por essas pesquisas, muitas vezes feitas sob um prisma muito estreito, tem sido, em geral, conflitantes. Numa pesquisa rápida na internet é fácil encontrar artigos apontando os malefícios do café, recomendando veementemente a sua retirada da ingestão cotidiana e outros apontando, também com bases cientificas, seus benefícios, chegando a considerá-lo, por exemplo, a chave da longevidade dos povos do mediterrâneo.

    Por conta desse cenário, é importante saber dos efeitos do café sob o ponto de vista da medicina chinesa para termos uma visão mais abrangente. A primeira concepção que devemos ter é que o café, por ser um componente vegetal ingerido regularmente, é entendido como um fitoterápico. E como todo fitoterápico, possui efeitos específicos, podendo trazer benefícios concretos para pessoas que necessitam desse efeito e também produzir resultados indesejáveis para outras pessoas em outras condições de saúde.

    O café faz parte parte da família das Rubiaceae, a qual pertencem vários outros fitoterápicos usados largamente na medicina chinesa, como o Zhī Zǐ (梔子), o BJi Tian (巴戟天) e o Gou Téng (鉤藤) . É interessante observar que, para possuirem efeitos terapêuticos, a dosagem média usada desses componentes deve ser entre 6 a 18 gramas diárias. Uma xícara típica de café é feita com 6 a 9 gramas. Se considerarmos a ingestão de uma a três xícaras de café por dia, ela estará dentre dessa faixa de efeito terapêutico.

    O principal efeito do café é promover as funções do sistema físico e energético do Fígado (肝 – Gān). Dentre todas as funções deste sistema fisiológico, a que o café atua mais diretamente é na promoção da circulação do Qi (氣 – Energia) do Fígado (肝 – Gān). O Fígado (肝 – Gān), no entendimento da medicina chinesa, é responsável pelo direcionamento do fluxo de Qi (氣 – Energia) do nosso corpo. Como essa circulação energética é responsável pelo impulsionamento do Sangue (血 – Xuè), o Fígado (肝 – Gān) controla, assim, as diferenças de circulação de Sangue (血 – Xuè) que nosso corpo realiza ao longo do dia. Em outras palavras, quando corremos, é esse sistema que envia mais Qi (氣 – Energia) e Sangue (血 – Xuè) para as pernas. Quando comemos ele os direciona para o Estômago (胃 – Wèi). Para saber mais do papel do sistema do Fígado na nossa saúde, recomendo o nosso artigo “Medicina Chinesa em campo – o técnico”.

    Facilmente essa função pode diminuir, o que chamamos de Depressão do Qi do Fígado (肝气郁 – Gān Qì Yù). Isso se deve especialmente aos padrões psíquicos de ansiedade, frustração e irritabilidade. Para saber mais sobre essa disfunção, recomendo o artigo “O gato toma leite, o rato come queijo e eu sou acupunturista”.

    O café atua na estimulação dessa função e, por isso, seu efeito de rápida ação gerador de maior vitalidade física e psíquica. Isto acontece pois o Qi (氣 – Energia) e Sangue (血 – Xuè) circulam e são direcionados com mais eficácia. Um dos usos mais antigos do café na medicina chinesa é no tratamento para regularizar a menstruação atrasada nos casos em que o sistema do Fígado (肝 – Gān) não é capaz de direcionar com facilidade o Sangue (血 – Xuè) para o útero e nem promover o fluxo da menstruação.

    Como efeito secundário, o café também atua no sistema físico e energético do Coração (心 – Xīn), também aumentando suas funções. Especificamente ele atua no efeito que chamamos tecnicamente de “abrir os orifícios do Coração (心 – Xīn)”. Esse é um termo metafórico para designar a ação deste sistema na manutenção da nossa consciência, especificamente no que diz respeito à nossa atenção e foco psíquico. Isso explica portanto o efeito do café no aumento do nosso foco e da nossa atenção.

    O aumento dessas funções, porém, nem sempre é benéfico. Uma pessoa que já apresente uma hiperatividade das funções do Fígado (肝 – Gān) e do Coração (心 – Xīn) rapidamente sentirá os efeitos prejudiciais do café. Como ele intensificará ainda mais o fluxo da circulação em geral, aumentará, por exemplo, a pressão intracraniana, gerando enxaquecas. Outros sintomas comuns são: fotofobia, aumento do fluxo menstrual, aftas, acnes, irritabilidade, dentre outros. Como o Estômago (胃 – Wèi) receberá um aporte abrupto e exagerado de circulação, aumentando demasiadamente suas funções, o café facilmente  sintomas gástricos como queimação, refluxo e gastrite.

    Por sua ação no Coração (心 – Xīn), o café pode provocar palpitações, excesso de transpiração, ansiedade, e por aumentar as funções psíquicas, pode provocar ainda insônia, euforia, memória comprometida e irritabilidade.

    O mais importante, portanto, é conhecer-se. Saber que o café, como quase todo alimento, pode fazer bem ou mal. Isso depende do estado da nossa saúde naquele momento e da quantidade que ingerimos aquela substância. Se você tem dúvidas se o café, ou qualquer outro alimento ou hábito, pode estar lhe fazendo mal, recomendo fortemente que faça uma consulta com um bom profissional de medicina chinesa. Ele será capaz de identificar e lhe explicar a situação da sua saúde e que efeitos são gerados por determinado alimento ou hábito.

    Edgar Cantelli Gaspar – edgar@terapiaschinesas.com.br
    Twitter: @edgarcantelli

  • Medicina Chinesa em campo – o atacante

    Ilustração: Caio Vítor - http://caioisdoodlin.tumblr.com

    Um bom goleiro, que passe segurança para o time. Uma dupla de zaga que imponha respeito. Um meio campo criativo e, ao mesmo tempo, marcador. Tudo isso é importantíssimo para termos um grande time. Mas, no final das contas, a bola precisa entrar no fundo da rede! Não é por acaso que os jogadores mais bem pagos, mais badalados e que marcam a história do futebol são os atacantes.

    Na nossa saúde, segundo o entendimento da nossa fisiologia na medicina chinesa, o goleador é o sistema físico e energético do Coração (心 – Xīn). É no Coração (心 – Xīn) que formamos e impulsionamos o Sangue (血 – Xuè). Um Sangue (血 – Xuè) rico em nutrientes, nos seus aspectos materiais (陰 – Yīn) e sutis (陽 – Yáng) e com fluidez na sua circulação é a grande meta do nosso organismo, o tão trabalhoso gol da nossa saúde.

    A nutrição de todos os tecidos do corpo depende de um Sangue (血 – Xuè) rico e que chegue com abundância a todas as suas células. Esse entendimento é comum, tanto para a medicina alopática ocidental, quanto para a chinesa. Mas, na chinesa, detectamos uma gama maior de distúrbios de deficiência na formação do Sangue (血 – Xuè) do que na medicina ocidental. Em outras palavras: todo quadro anêmico, detectado num exame de sangue, também será considerado como uma Deficiência de Sangue (血 – Xuè) na medicina chinesa. Mas nem toda Deficiência de Sangue (血 – Xuè) será também será considerada, na alopatia, uma anemia.

    São nesses momentos que percebemos quando a bola não está chegando redonda para o atacante. Sua função é botar a bola pra dentro, mas, para isso, depende que a bola chegue com qualidade e abundância no ataque. Quantos jogos não vemos em que, por mais que tenhamos ótimos atacantes em campo, pela falta de qualidade dos zagueiros, dos volantes e do meio campo, a bola não chega nos artilheiros, e acabamos vendo aquele jogo chato, que não sai do zero a zero.

    Da mesma forma, por mais que nosso Coração (心 – Xīn) esteja saudável, se o Estômago (胃 – Wéi) não trabalhar bem os alimentos, tocando para o Baço (脾 – ) transformar o que for possível em energia nutritiva (谷氣 – Gǔ Qì), ascender então para o Pulmão (肺 – Fèi), que deve fazer o meio de campo, recebendo também a energia do ar (空氣 – Kōng Qì), e tocando, por fim, para o Coração (心 – Xīn), o gol (o Sangue (血 – Xuè) não sai.

    Existe um ditado ancestral na medicina chinesa que sintetiza a abrangência da influência da formação e circulação do Sangue (血 – Xuè): “Um Sangue ( – Xuè) abundante, uma Mente ( – Shén) feliz.”  Em qualquer nível de Deficiência de Sangue (血 – Xuè), mas especialmente nos mais severos, teremos algum grau de uma profunda sensação de infelicidade, sendo reflexo da má nutrição de todos os tecidos do corpo, e, especialmente, o Cérebro (脑 – Nǎo).

    A influência do Coração (心 – Xīn) na Mente (神 – Shén) não se dá só pelo Sangue (血 – Xuè). O sistema energético do Coração (心 – Xīn) nutre a Mente (神 – Shén) do seu aspecto mais importante: a consciência. A capacidade de mantermos nossa atenção, nosso foco, de acessar nossa memória e de gerenciar todos os outros aspectos psíquicos-emocionais (como a imaginação, as sensações sensoriais, a nossa força de vontade, assim como as emoções, de modo geral) vem da influência direta dessa função do sistema do Coração (心 – Xīn) no Cérebro (脑 – Nǎo). É fácil percebermos o quanto as nossas emoções, quando intensas ou prolongadas em excesso, desencadeiam algum tipo de palpitação, um dos primeiros sintomas, junto com a memória fraca e a insônia, de que a saúde do Coração (心 – Xīn), em algum nível, está prejudicada.

    Por ter tal responsabilidade sobre o Sangue (血 – Xuè) e gerenciar nossa função psíquica mais importante, o Coração (心 – Xīn) é chamado na medicina chinesa de Imperador do nosso organismo. Com essa informação espero que todos cuidemos para que o nosso Imperador (君 – Jūn) não acumule tanta gordura, o que prejudica tanto sua estrutura, quanto suas funções, assim como o “imperador” atual do Corinthians.

    Na história do futebol, praticamente todos os gênios do ataque tiveram algum grande companheiro, normalmente obscurecido pelo brilho do outro, mas fundamental para o time. Pelé e Coutinho, Romário e Bebeto, Ronaldo e Rivaldo, são alguns bons exemplos. Da mesma forma, nosso Imperador possui um companheiro, cuja função é simplesmente protegê-lo: o Pericárdio (心包 – Xīn Bāo). Na medicina chinesa o Pericárdio (心包 – Xīn Bāo) não é considerado nem um Órgão (脏 – Zàng), nem uma Víscera (腑 – ). Ele existe, tanto fisicamente (ele é uma membrana que recobre o coração), quanto energeticamente (ele possui até o Canal Energético próprio), simplesmente para impedir que agentes patogênicos, tanto exteriores, quanto interiores, possam atingir o Coração (心 – Xīn). Por isso sempre consideramos qualquer Síndrome no Coração (心 – Xīn) como sendo importante, pois indica que o fator patogênico é muito forte, ou o Pericárdio, e o próprio Coração (心 – Xīn), estão fragilizados por alguma razão, permitindo que a Síndrome se desenvolva. Para termos uma ideia da profundidade que uma Síndrome pode atingir o sistema físico e energético do Coração (心 – Xīn), toda patologia psiquiátrica na medicina ocidental vem de algum distúrbio sério no Coração (心 – Xīn), na medicina chinesa.

    As recomendações para a saúde do Coração (心 – Xīn) são as mesmas para um bom atacante: praticar exercícios regulares para estar em forma e o estado emocional o mais saudável possível. Os jogadores mais badalados muitas vezes são os que mais facilmente jogam suas carreiras (e suas vidas) fora por se deixarem levar pela euforia da fama e da riqueza. Na medicina chinesa temos que o padrão emocional que mais diretamente afeta o Coração (心 – Xīn) é justamente a euforia. Mas a euforia é um padrão emocional abrangente. Entendemos que todo tipo de hiperexcitação da consciência é considerado um quadro eufórico. Por isso, com esse estilo de vida moderno de excesso de estímulos, compromissos e tarefas, que mantém a nossa Mente muito focada e estimulada, por muitas horas no dia (às vezes até dormindo), sobrecarrega muito o Coração (心 – Xīn). Quem sabe, entendendo isso, consigamos manter o nosso Coração (心 – Xīn) literalmente mais em paz, e marcamos um verdadeiro gol de placa.

    Leia os outros artigos da série:

    Edgar Cantelli Gasparedgar@terapiaschinesas.com.br – Twitter: @edgarcantelli

     

  • A Interdependência dos Órgãos e Vísceras (Zang Fu)

    Desde os primórdios do desenvolvimento das teorias e práticas da Medicina Tradicional Chinesa, especialmente compilados no Huang Di Nei Jing (黃帝内經), temos o entendimento que nossa fisiologia é especialmente comandada pelos Órgãos (Zang) e pelas Vísceras (Fu). Cada um destes possui um aspecto Yin, relacionado à sua forma, sua estrutura, sua base material e também um aspecto Yang, relacionado às suas funções, tanto físicas, conhecidas também pela medicina alopática, quanto energéticas, consideradas exclusivamente pela Medicina Chinesa.

    Esse conjunto de funções e estruturas é visto tanto isoladamente como também interdependente entre si, ou seja, uma disfunção da nossa saúde pode ser decorrente do mal funcionamento funcional ou estrutural de um Órgão (Zang) ou Víscera (Fu), como também devido à influência de um deles no funcionamento do outro. O mais interessante é que todos relacionam-se mutuamente e portanto as Síndromes que envolvem mais de um Órgão (Zang) ou Víscera (Fu), na prática, são muito mais comuns do que as de um só.

    Podemos pegar o exemplo da fisiologia do Pulmão, como entendida pela Medicina Chinesa: sua principal função é realizar a respiração, fazendo de forma eficaz tanto a troca gasosa, como a captação do Qi (Energia) do ar. Mas para realizar a inspiração, ponto mais crítico da respiração, ele depende do Qi (Energia) do Rim. Realizada a captação do Qi (Energia) do ar, o Pulmão forma o Qi (Energia) torácica, que irá para o Coração, onde acontecerá a união desta energia com o fluído do Sangue (Xue). Mas para formar um bom Qi torácico, o Pulmão depende do envio do Qi (Energia) Nutritivo feito pelo Baço, que é a energia extraída da alimentação, que por sua vez foi preparada pelo Estômago. Mas para que todas essas trocas energéticas aconteçam sem impedimento o Pulmão depende da manutenção do fluxo de todo o Qi (Energia) do corpo feita pelo Fígado sem impedimentos.

    Esse é um recorte mínimo da nossa complexa fisiologia, como entendida pela Medicina Chinesa. É através dessa forma de compreender a saúde e a doença que conseguimos identificar uma origem comum a sintomas considerados muitas vezes desconexos pela medicina alopática.

    Mas cada vez mais percebemos alguns sinais de que mesmo a medicina ocidental está retomando a visão de que nosso corpo é todo interdependente, como podemos ver nessa reportagem sobre o artigo científico publicado no Journal of the American Society of Nephrology, relatando uma pesquisa que mostra que pessoas com elevada taxa de descanso do batimento cardíaco são mais propensas a doenças renais.